Por Allan Kardec
De todas as
chagas morais da Sociedade, parece que o egoísmo é a mais difícil de
desarraigar. Com efeito, ela o é tanto mais quanto mais é alimentada
pelos próprios hábitos da educação. Parece que se toma a tarefa de
excitar, desde o berço, certas paixões que mais tarde tornam-se uma
segunda natureza. E admiram-se dos vícios da Sociedade, quando as
crianças o sugam com o leite. Eis um exemplo que, como cada um pode
julgar, pertence mais à regra do que à exceção.
Numa família de
nosso conhecimento há uma menina de quatro a cinco anos, de uma
inteligência rara, mas que tem os pequenos defeitos das crianças
mimadas, isto é, é um pouco caprichosa, chorona, teimosa, e nem sempre
agradece quando lhe dão qualquer coisa, o que os pais cuidam bem de
corrigir, porque fora esses defeitos, segundo eles, ela tem um coração de ouro, expressão consagrada. Vejamos como eles se conduzem para lhe tirar essas pequenas manchas e conservar o ouro em sua pureza.
Um dia
trouxeram um doce à criança e, como de costume, lhe disseram: “Tu o
comerás se fores boazinha”. Primeira lição de gulodice. Quantas vezes, à
mesa, não dizem a uma criança que não comerá tal petisco se chorar.
“Faze isto, ou faze aquilo”, dizem, “e terás creme” ou qualquer outra
coisa que lhe apeteça, e a criança se constrange, não pela razão, mas em
vista de satisfazer a um desejo sensual que aguilhoam.
É ainda muito
pior quando lhe dizem, o que não é menos frequente, que darão o seu
pedaço a uma outra. Aqui já não é só a gulodice que está em jogo, é a
inveja. A criança fará o que lhe dizem, não só para ter, mas para que a
outra não tenha. Querem dar-lhe uma lição de generosidade? Então lhe
dizem: “Dá esta fruta ou este brinquedo a fulaninho”. Se ela recusa, não
deixam de acrescentar, para nela estimular um bom sentimento: “Eu te
darei um outro”, de modo que a criança não se decide a ser generosa
senão quando está certa de nada perder.
Certo dia
testemunhamos um fato bem característico neste gênero. Era uma criança
de cerca de dois anos e meio, a quem tinham feito semelhante ameaça,
acrescentando: “Nós o daremos ao teu irmãozinho, e tu ficarás sem nada.”
Para tornar a lição mais sensível, puseram o pedaço no prato do
irmãozinho, que levou a coisa a sério e comeu a porção. À vista disso, o
outro ficou vermelho e não era preciso ser nem o pai nem a mãe para ver
o relâmpago de cólera e de ódio que partiu de seus olhos. A semente
estava lançada: poderia produzir bom grão?
Voltemos à
menina, da qual falamos. Como ela não se deu conta da ameaça, sabendo
por experiência que raramente a cumpriam, desta vez foram mais firmes,
pois compreenderam que era necessário dominar esse pequeno caráter, e
não esperar que com a idade ela adquirisse um mau hábito. Diziam que é
preciso formar cedo as crianças, máxima muito sábia e, para a pôr em
prática, eis o que fizeram: “Eu te prometo, disse a mãe, que se não
obedeceres, amanhã cedo darei o teu bolo à primeira menina pobre que
passar.” Dito e feito. Desta vez queriam manter a promessa e dar-lhe uma
boa lição. Assim, no dia seguinte, de manhã, tendo visto uma pequena
mendiga na rua, fizeram-na entrar e obrigaram a filha a tomá-la pela mão
e ela mesma lhe dar o seu bolo. Então elogiaram a sua docilidade. Moral
da história: A filha disse: “Se eu soubesse disto teria me apressado em
comer o bolo ontem.” E todos aplaudiram esta resposta espirituosa. Com
efeito, a criança tinha recebido uma forte lição, mas de puro egoísmo,
da qual não deixará de aproveitar-se uma outra vez, pois agora sabe
quanto custa a generosidade forçada. Resta saber que frutos dará mais
tarde esta semente quando, com mais idade, a criança fizer a aplicação
dessa moral em coisas mais sérias que um bolo.
Sabe-se todos
os pensamentos que este único fato pode ter feito germinar nessa
cabecinha? Depois disto, como querem que uma criança não seja egoísta
quando, em vez de nela despertar o prazer de dar e de lhe representar a
felicidade de quem recebe, impõem-lhe um sacrifício como punição? Não é
inspirar aversão ao ato de dar e àqueles que necessitam?
Outro hábito,
igualmente frequente, é o de castigar a criança mandando-a comer na
cozinha com os criados. A punição está menos na exclusão da mesa do que
na humilhação de ir para a mesa dos serviçais. Assim se acha inoculado,
desde a mais tenra idade, o vírus da sensualidade, do egoísmo, do
orgulho, do desprezo aos inferiores, das paixões, numa palavra, que com
razão são consideradas como as chagas da Humanidade.
É preciso ser
dotado de uma natureza excepcionalmente boa para resistir a tais
influências, produzidas na idade mais impressionável, na qual não podem
encontrar o contrapeso nem da vontade, nem da experiência. Assim, por
pouco que aí se ache o germe das más paixões, o que é o caso mais
ordinário, dada a natureza da maioria dos Espíritos que se encarnam na
Terra, ele não pode deixar de desenvolver-se sob tais influências, ao
passo que seria preciso observar-lhe os menores traços para reprimi-los.
A falta, sem
dúvida, é dos pais, mas é preciso dizer que muitas vezes estes pecam
mais por ignorância do que por má vontade. Em muitos há,
incontestavelmente, uma culposa despreocupação, mas em muitos outros a
intenção é boa, no entanto, é o remédio que nada vale, ou que é mal
aplicado.
Sendo os
primeiros médicos da alma de seus filhos, os pais deveriam ser
instruídos, não só de seus deveres, mas dos meios de cumpri-los. Não
basta ao médico saber que deve procurar curar, é preciso saber como
agir. Ora, para os pais, onde estão os meios de instruir-se nesta parte
tão importante de sua tarefa? Hoje dá-se muita instrução à mulher;
fazem-na passar por exames rigorosos, mas algum dia foi exigido da mãe
que soubesse como fazer para formar o moral de seu filho? Ensinam-lhe
receitas caseiras, mas foi iniciada aos mil e um segredos de governar os
jovens corações?
Os pais,
portanto, são abandonados sem guia à sua iniciativa. É por isto que
tantas vezes seguem caminhos errados. Assim recolhem, nos erros dos
filhos já crescidos, o fruto amargo de sua inexperiência ou de uma
ternura mal compreendida, e a Sociedade inteira lhes recebe o
contragolpe.
Considerando-se
que o egoísmo e o orgulho são reconhecidamente a fonte da maioria das
misérias humanas; que enquanto eles reinarem na Terra não se pode
esperar nem paz, nem caridade, nem fraternidade, então é preciso
atacá-los no estado de embrião, sem esperar que fiquem vivazes.
Pode o
Espiritismo remediar esse mal? Sem dúvida nenhuma, e não hesitamos em
dizer que ele é o único suficientemente poderoso para fazê-lo cessar,
pelo novo ponto de vista com o qual ele permite perceber a missão e a
responsabilidade dos pais; dando a conhecer a fonte das qualidades
inatas, boas ou más; mostrando a ação que se pode exercer sobre os
Espíritos encarnados e desencarnados; dando a fé inquebrantável que
sanciona os deveres; enfim, moralizando os próprios pais. Ele já prova
sua eficácia pela maneira mais racional empregada na educação das
crianças nas famílias verdadeiramente espíritas. Os novos horizontes que
abre o Espiritismo fazem ver as coisas de outra maneira. Sendo o seu
objetivo o progresso moral da Humanidade, ele forçosamente deverá
iluminar o grave problema da educação moral, primeira fonte da
moralização das massas. Um dia compreender-se-á que este ramo da
educação tem seus princípios, suas regras, como a educação intelectual,
numa palavra, que é uma verdadeira ciência. Talvez um dia, também, será
imposta a toda mãe de família a obrigação de possuir esses
conhecimentos, como se impõe ao advogado a de conhecer o Direito.
(Revista Espírita, fevereiro de 1864)